Mauro Santayana
Sem pauta | O sinal da cruz
Quando chegou, pernas e braços perebentos, alguns riram, mas houve os que o olharam com compaixão. Nos baldios humanos em que nos cumpria existir, era normal que ríssemos diante das desgraças alheias: era uma forma de exorcizar o nosso próprio sofrimento. O menino era cheio de outras marcas, todas estranhas. Trazia, no peito, dependurada em uma corrente de cobre, a cruz de pedra, talhada por suas próprias mãos, segundo nos disse. Nas nervuras minerais mostrava-nos alguns sinais, de longe sugerindo números e letras, nas quais lia pequenos apocalipses. Andava sempre em ziguezague, olhava sempre para o céu e para o chão, cuspia sobre os próprios pés descalços, como os de todos nós.
“Desprezar os mandamentos de Deus é o caminho do inferno” — pregava, enigmático, enquanto passava pelos grupos, reunidos nos cantos das paredes pelo frio da serra.
Quando Geraldo fugiu e foi apanhado, o menino nos avisou no dormitório. Soprou para o seu companheiro de lado: “Passa pra frente: pegaram o Geraldo na estrada, ele vai chegar amanhã cedo com um soldado”.
Era verão alto, e às 6 da manhã, antes que soasse o apito para a formação dos que iam para o serviço no campo, o menino, sozinho, colocou-se sob a grande paineira e começou a rezar o credo em voz muito alta. O chefe de disciplina ordenou-lhe que fizesse silêncio. “Só obedeço a Deus Nosso Senhor, e rezo por Geraldo que vai sofrer por todos os pecadores” — respondeu, altivo. O chefe de disciplina apitou para a formatura, e o menino não se moveu, continuando a rezar. “Deixa ele acabar de rezar”, aconselhou Martins, um funcionário experiente. “Ele é manso, só tem mania de rezar”.
Antes que terminasse sua oração, chegou Geraldo. O chefe de disciplina recebeu-o com o bofetão nos ouvidos. O menino, debaixo da paineira, gritou-nos: “Vamos rezar juntos, vamos rezar juntos” — e puxou o padre-nosso. Todos o acompanhamos, em voz muito alta. “Cala, cambada de vagabundos” — gritou, histérico, o chefe de disciplina. “Cala, todo mundo, ou vou moer no pau este cachorro aqui”.
—“Vamos rezar, gente” — impelia-nos o menino — “o pão nosso, de cada dia, nos daí hoje”.
Gritávamos a oração, e, alucinado, o chefe de disciplina chutava Geraldo, que começou a pôr sangue pelas narinas. “Ele sofre por nós” — explicava o menino, ainda de joelhos, e passava à salve-rainha.
Alguém chamou o diretor, que veio correndo, e subjugou o auxiliar pelos ombros. “Você está louco? Estão todos loucos?”.
No chão, a camisa de zuarte empapada em sangue, Geraldo não se movia. “Você matou o menino! Vamos, você matou o menino?”.
Levantou-se então o “rezador”, como o chamávamos, e disse ao diretor que se acalmasse. “Ele não morreu, está sofrendo por nós”.
Duas semanas depois, levaram o menino para um manicômio. “Ele estava pondo os meninos todos loucos” — ouvi o diretor explicar a um tio que fora vê-lo. “Lá, naturalmente, vai sarar”.
Sabíamos que não. Um dia antes, no dormitório, ele passou-nos a mensagem: “Amanhã começa meu martírio. Rezem por mim”. Durante uns dias, rezamos. Depois, o esquecemos.
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